O céu estremecia, passos largos na calçada. Havia atraso, mas os motivos eram plausíveis. Telefonemas propositalmente não atendidos, afinal já estava a caminho.
Portas abertas, mesas apostos. A noite começava sem prometer sucesso.
Ventava. O bar profundamente alongado e estreito, encanava o vento porta a dentro. A chuva era eminente e sabe-se ha tempos da existência de fendas no teto. Quando dos temporais, pode-se presenciar a bucólica cena de uma cachoeira particular, bem no meio do bar, amparada inutilmente por baldes e panos de chão.
Foi então que, fora o prognóstico metereológico, entra porta a dentro o músico daquela noite. Contratado pra preencher o ambiente por toda a extensão da madrugada, animar aqueles que saem de casa afim de jantar fora em busca de um programinha relaxante, este homem poderia ser, sozinho, o responsável pelo fracasso de toda uma noite. Mais, de uma semana de noites.
Vamos ao que viemos. Alto, beirando 1,80m, se minha baixíssima estatura não estiver a me atrapalhar o julgamento. Uma assustadora proeminência abdominal, conhecida de alguns simplesmente por "pança", onde astutamente apoia-se o único instrumento musical que lhe acompanha a voz, um violãozinho maroto. Nas pernas, calças jeans. Nos pés, um par de sandálias de couro que resumiam-se à sola e uma tirinha envolvendo o dedão. Dedão este, há que se ressaltar, numa condição asquerosa de habitat de fungos dérmicos e outras afecções cutâneas indesejaveis. Uma camisa colorida, cabelo farto e composto por pequenos cachos emoldurando um rosto redondo e guarnecido por uma papada recoberta de barba mal feita.
Locomovia-se numa postura mamolenga, rebolando as sobras laterais e com os pés, no linguajar popular, a marcar que faltava sempre 10 minutos pras 2 horas. Como se não bastasse, de uma lado a outro carregava um cartaz onde via-se estampada sua própria face e gasto estava, com marcas de uma manipulação exaustiva. Passava ainda, quando não com o dito poster em mãos, acenando a toda e qualquer pessoa que estivesse na reta de seu caminho. Tanto as que conhecia quando aquelas nunca antes vistas por ele. Uns lhe respondiam o efusivo movimento de mãos com um discreto aceno de cabeça. Os outros que nunca lhe haviam visto a cara, entreolhavam-se a questionar em silêncio a que se prestava aquilo. A nós, uniformizadas, limitava-se a pedir. Não, a mandar. Mandar buscar-lhe uma cerveja, mandar que lhe ligasse o ventilador que servia ao palco; mandar que lhe trocassem o copo, "é um absurdo servirem em copos tão pequenos".
Enfim, quando já desta extensa descrição e exaustiva, compreendo, mas não menos importante, a noite começou.
Principiando de duas ou três mesas, em pouco tempo, apesar do clima inospitamente frio e úmido, cadeiras foram sentadas, lugares rearranjados a contemplar números variados de acompanhantes, pratos servidos e copos a obedecer o rotineiro movimento de enxer-se esvaziar-se, repetidamente. E a música. Ou simplesmente o som, neste caso hereticamente chamaod de música.
A voz foi tão rasgada na primeira música quanto na última, acompanhada de uma balançar de cabeça que parecia simplesmente concordar todo o tempo com aquilo que se estava a cantar. Havia apenas um violãozinho, mas era como se fosse uma orquestra. Penso que ele usava a boca pra produzir magicamente dezenas de outros instrumentos; ele fazia sons inacreditáveis e por vezes impossíveis de identificar. Entre grunhidos, gemidos, cuspidinhas no diâmetro do microfone, alongamentos de "esses" e "eles" nos finais das palavras e uns "uôws" absolutamente fora de contexto, uma tampa de garrafa PET fazia as vezes da cornetinha safada.
Este era o único do ramo que não recusava pedidos do público: se ele não sabia a melodia e sabia a letra, cantava à capela. Se sabia a melodia, porém desconhecia a letra, pedia um auxílio, poucas vezes atendido, do público. E se ignorava qualquer das partes que compunham a música, inventava-as. Não havia tempo ruim, mesmo com os ventos a prenunciar a tempestade fora do bar.
Algum aplauso apareceu depois de certo tempo de consumo. Ignorando o estado etílico dos então apreciadores da apresentação, o Dito Cujo musicava daca vez mais. Em três horas de show a excitação do patamar elevado um nível a cima de qualquer outro fazia-o cantar cada vez mais alto e ininteligivelmente. Assim que a parábola de auto-admiração atingiu seu ápice, iniciou-se o declínio.
Agora o líquido permanecia muito mais tempo nos copos, com os bebedores ampapuçados do gás alí contido; ou simplesmente porque sua própria parábola já também estava em declínio. Agora via-se o cansaço nos olhos uniformizados de quem carregava pra lá e para cá os resquícios da noite, gradualmente alocada no tempo-espaço do passado. Também nos bastidores gastronômicos, imperava o ritual de organização e despedida. Os pagamentos apressavam-se em cumprir sua função de compensar o consumado e uma a uma, cada cadeira foi desocupada e rearranjadas as mesas em seus lugares de origem.
E o som continuou, inacreditavelmente, por momentos que poucas vezes pareceram tão longos, pra finalmente atingir o que parecia ser o fim. Quando ao fim da última música, tão rasgada como as primeiras, como se já havia comentado, dando a impressão de se tê-las ouvido durante todo o tempo as mesmas, adentrou o recinto um sujeitinho cambaleante acompanhado de mais uma figura quase igualmente cambaleante. Alcansaram a última mesa, contando-se da porta ao fundo, bastante próximos ao cantor e, com aparente entusiasmo, comprimentaram-no. "Viemos aqui com o único e exclusivo intuito de ouvir sua música! Toque mais!" dizia um dos componentes do ébrio casal. Antes de retirar-se completamente do palco, ao efusivo comprimento, o músico respondeu com um discreto aceno de cabeça.
A noite foi um sucesso.
domingo, 19 de outubro de 2008
domingo, 12 de outubro de 2008
Carta a distantes contando uma notícia de trabalho.
Algumas memórias merecem a primeira pessoa. Algumas coisas, penso eu, são para poucos. Por isso a regalia pronominal já mencionada.
Vamos começar tudo, afinal é o melhor ponto a se principiar uma história. Sim, um novo emprego. Não tão novo, posto que nem a ação nem a personagem mudam desde há 4 anos (sim eu estive contando), mas o lugar e o horário inéditos. É um restaurante e pesque-pague, durante o dia (das 9h da manhã às 7h da noite), eu mesma de sempre e como garçonete. Além da diferença espaço temporal existe agora uma coisa tão inédita quanto incômoda (e isso foi altamente eufemístico): uma daquelas tocas de redinha que se usa pra que os cabelos não deitem na comida alheia.
Outra coisa que não mudou foi o estereótipo do dono do estabelecimento. Arquétipo este que aos poucos deixa o mito de ser um estereótipo para a mais pura realidade, constatada. Quase um idoso, dado os cabelos brancos, o bigode já grisalho e a pança enorme. Olhos pequenos, com bolsas a circulá-los, cílios quase nenhum, sobrancelha a sobrar-lhe, como já demonstra a própria palavra, uma boca pequena quase inexistente, bochechas a pender-lhe pelas laterais e um humor que simplesmente não há. Ou, se há, é tão peculiar que apenas percebido por ele próprio. Isso pra ser bondosa e sem citar a exploração proposital e cega do alheio, quem quer que seja este: clientes ou funcionários. Se ambos ao mesmo tempo, então, melhor ainda. Economiza-lhe o tempo.
Havia ainda naqueles olhos quase impossíveis de se achar em meio a tanta pelanca facial (ah sim, a idade...), uma prazer inominável em observar o ridículo gratuito. O ridículo gratuito que aquela redinha simbolizava. Acerca desta (a redinha) venho a chamar um momento de reflexão. Qual seria a sua utilidade num ambiente de terra e grama onde se presencia um vendaval invejável a qualquer brisa que se preze? Tendo os cabelos severamente presos à cabeça e a terra a voar por sobre os pratos livremente, qual o real papel da famigerada "redinha"? Sim, o ridículo. O que seria da tarde infindável de um senhor idoso, solitário, descasado, dono de um pesque-pague no meio do nada, senão rir-se de algumas miseráveis com a cabeça enredada a coçarem-se pelo diâmetro completo da cabeça de pouco em pouco?
Afora isso, deve ter ficado claro o quanto fui chateada por esse ínfimo detalhe, houveram horas, quatro precisamente, duas antes do serviço e duas depois, de completa inutilidade. "Não leia seu livro porque se o Patrão (isso por sí um termo bastante explicito da opressão) vê você à toa vai gritar com você. Sim, eu sei, estamos vazios e o trabalho não há, mas vamos ande um pouco, finja que faz algo de útil.".
De qualquer forma, eram 7h20 e eu estava em casa. Horário em que, em outros dias estaria a sair para o serviço atrasada, diga-se de passagem. Vantagem única. Mas de um peso grande.
A realidade é que tenho alguns dias (dois, pra ser exata) pra decidir o que fazer dos meus infinitos empregos. Agarra-los todos, à alguns ou à nenhum e lutar pela busca de um outro ainda.
Estejam a rezar por mim, se puderem e sobrar-lhes um tempinho. A rezar pelo desfecho mais acertado.
E obrigada de qualquer forma pela paciencia a ler-me, agora.
E perdoem-me, ainda, o rebuscamento explícito do texto. Sendo as palavras uma forma de interpretação do espírito, esta complicação gramatical é a minha complicação prórpia. O meu "não saber o que fazer".
Amo-as, amigas minhas. A todas vocês.
Beijos e muitas saudades.
Vamos começar tudo, afinal é o melhor ponto a se principiar uma história. Sim, um novo emprego. Não tão novo, posto que nem a ação nem a personagem mudam desde há 4 anos (sim eu estive contando), mas o lugar e o horário inéditos. É um restaurante e pesque-pague, durante o dia (das 9h da manhã às 7h da noite), eu mesma de sempre e como garçonete. Além da diferença espaço temporal existe agora uma coisa tão inédita quanto incômoda (e isso foi altamente eufemístico): uma daquelas tocas de redinha que se usa pra que os cabelos não deitem na comida alheia.
Outra coisa que não mudou foi o estereótipo do dono do estabelecimento. Arquétipo este que aos poucos deixa o mito de ser um estereótipo para a mais pura realidade, constatada. Quase um idoso, dado os cabelos brancos, o bigode já grisalho e a pança enorme. Olhos pequenos, com bolsas a circulá-los, cílios quase nenhum, sobrancelha a sobrar-lhe, como já demonstra a própria palavra, uma boca pequena quase inexistente, bochechas a pender-lhe pelas laterais e um humor que simplesmente não há. Ou, se há, é tão peculiar que apenas percebido por ele próprio. Isso pra ser bondosa e sem citar a exploração proposital e cega do alheio, quem quer que seja este: clientes ou funcionários. Se ambos ao mesmo tempo, então, melhor ainda. Economiza-lhe o tempo.
Havia ainda naqueles olhos quase impossíveis de se achar em meio a tanta pelanca facial (ah sim, a idade...), uma prazer inominável em observar o ridículo gratuito. O ridículo gratuito que aquela redinha simbolizava. Acerca desta (a redinha) venho a chamar um momento de reflexão. Qual seria a sua utilidade num ambiente de terra e grama onde se presencia um vendaval invejável a qualquer brisa que se preze? Tendo os cabelos severamente presos à cabeça e a terra a voar por sobre os pratos livremente, qual o real papel da famigerada "redinha"? Sim, o ridículo. O que seria da tarde infindável de um senhor idoso, solitário, descasado, dono de um pesque-pague no meio do nada, senão rir-se de algumas miseráveis com a cabeça enredada a coçarem-se pelo diâmetro completo da cabeça de pouco em pouco?
Afora isso, deve ter ficado claro o quanto fui chateada por esse ínfimo detalhe, houveram horas, quatro precisamente, duas antes do serviço e duas depois, de completa inutilidade. "Não leia seu livro porque se o Patrão (isso por sí um termo bastante explicito da opressão) vê você à toa vai gritar com você. Sim, eu sei, estamos vazios e o trabalho não há, mas vamos ande um pouco, finja que faz algo de útil.".
De qualquer forma, eram 7h20 e eu estava em casa. Horário em que, em outros dias estaria a sair para o serviço atrasada, diga-se de passagem. Vantagem única. Mas de um peso grande.
A realidade é que tenho alguns dias (dois, pra ser exata) pra decidir o que fazer dos meus infinitos empregos. Agarra-los todos, à alguns ou à nenhum e lutar pela busca de um outro ainda.
Estejam a rezar por mim, se puderem e sobrar-lhes um tempinho. A rezar pelo desfecho mais acertado.
E obrigada de qualquer forma pela paciencia a ler-me, agora.
E perdoem-me, ainda, o rebuscamento explícito do texto. Sendo as palavras uma forma de interpretação do espírito, esta complicação gramatical é a minha complicação prórpia. O meu "não saber o que fazer".
Amo-as, amigas minhas. A todas vocês.
Beijos e muitas saudades.
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